quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Devaneios Papareia: Parte I

“Rio Grande nunca vai mudar mesmo que mude. E pode mudar em toda e qualquer esfera a qual se possa imaginar. Pode acontecer o armagedom, a nova era glacial, que chegou a ser anunciada essa semana, ou quem sabe, um novo surto de peste que dizime 1/3 de sua população. Mesmo assim, Rio Grande permanecerá estática, imóvel como sempre esteve. A solução possível estaria, quem sabe, numa colonização intergalática. Talvez alienígenas poderiam modificar as coisas por aqui. Mesmo assim, continuo acreditando no potencial do povo riograndino. Enquanto existir o último resquício de vida papareia, nosso espírito será conservado”. 

A recente matéria publicada aqui no site sobre o turismo em Rio Grande é o reflexo de uma cidade imóvel, que mesmo após as mudanças do paço, continua tratando velhos assuntos e questões como sempre foram tratadas, ou seja, na base do coleguismo, do cabide de emprego, do despreparo profissional e da eterna confusão entre o público e privado.

Pensar hoje a cidade de Rio Grande, como elemento histórico social dentro dos mais diversos desdobramentos e fragmentações que isso possa ter, é justamente se transportar para outros momentos históricos. Nós historiadores adoramos fazer esse exercício dialético de passado/presente, presente/futuro. É uma ferramenta de trabalho. Vivemos tentando encontrar semelhanças, erros e acertos, no que já passou para não incorrer, no presente/futuro, no mais do mesmo.

As coisas funcionam assim e não sou eu que estou dizendo. Centenas de intelectuais já se debruçaram e escreveram teses sobre essa relação de definitiva existência do historiador com o tempo. Alguns deles escreveram para definir nossa real função e fazer a diferenciação entre historiador e futurólogo. Não somos, não temos esse poder. Particularmente, eu acharia bem legal. 

Fonte: acervo Papareia
Fonte: acervo Papareia
Para aqueles que, assim como eu, gostam de observar atentamente a realidade, o momento nunca foi tão instigante. Grandes investimentos no setor industrial, comércio aquecido, elevados custos na habitação, milhares de migrantes, trânsito beirando o caos, aumento da pobreza e da violência, invasões de terrenos, lixo sendo descartado em locais públicos, além, é claro, da nova gestão administrativa no governo da cidade.

Citei apenas esses exemplos e poderia aqui elencar muito outros, mas acredito que são suficientes para nossa problematização. Estamos falando de Rio Grande, a primeira cidade do Estado do Rio Grande do Sul, aquela que foi pioneira em diversas coisas. Primeira indústria têxtil, primeiro clube de futebol, primeiro balneário, primeira biblioteca...

Ao longo dos anos, Rio Grande cresceu em meio ao seu caráter cosmopolita sem saber qual era o significado dessa palavra, abrigando e recebendo estrangeiros das mais variadas nacionalidades, etnias, estados do Brasil e cidades do Rio Grande do Sul. Por conta de nossa posição estratégica favorável, possuímos um dos maiores portos do país e, disso, surge um de nossos principais enigmas.
Cidades cosmopolitas convivem, diariamente, com a diversidade. Esses lugares aprendem a viver com o distinto, explorando, abrigando e colhendo dessas relações sociais construídas no cotidiano, o que elas podem fornecer de melhor: a pluralidade cultural e o reconhecimento do outro.

Rio Grande talvez seja uma das raras exceções onde tudo deu e continua dando errado. O pluralismo cultural só funciona na Feira de Artesanato local, em que as etnias são apresentadas como heranças culturais válidas, onde o árabe pode andar de burca ou taqiyah sem ser atravessado por um olhar seguido de um comentário que tenta o ridicularizar em pleno centro comercial no século XXI. Onde os africanos podem cultivar e mostrar suas raízes sem serem taxados de “bando de macumbeiros”.

Rua Andradas -Anos60,Andradas 

O mesmo pluralismo cultural da feira, que reconhece as etnias, desconsidera a grande massa de trabalhadores pobres migrantes da região falida da campanha gaúcha, que foram os alicerces, braços, pernas e cérebros da cidade industrial mais importante do Estado do Rio Grande do Sul, nas primeiras décadas do século XX.

Em nossas raízes, somos o resultado dessa mistura de povos e regiões, imigrantes e migrantes. Portugueses, ingleses, espanhóis, italianos, poloneses, uruguaios, africanos, palestinos, sírios, libaneses, judeus, católicos, muçulmanos, umbandistas e adoradores do diabo. Além disso, somos ainda gaúchos e brasileiros. Rio Grande é sim, muito de toda essa mistura, mesmo que fatos como a imigração e migração nessas terras papareias tenham, muitas vezes, passado batido por trabalhos acadêmicos.

A mentalidade riograndina não permite inovação, é quase como heresia, predestinação divina ou seria castigo?

Algo do tipo: vocês nunca terão o protagonismo, seu papel se resume àquela personagem carismática que inicia alguma saga, ganha a simpatia do público e morre no meio da trama, passando o posto de mocinho/herói, ao colega de roteiro, a moça do lado.

Neste caso a moça do lado se chama Pelotas, uma cidade surgida duas décadas depois (1758), mas que vem pra roubar a cena com a sua beleza e inteligência de princesa e, assim que possível, transformar-se na personagem principal da região Sul. Historicamente, a cidade vizinha valorizou seus costumes locais, soube trabalhar muito bem com a diversidade cultural, explorou suas condições geográficas, abrigou colônias de imigrantes nas serras ao seu redor, deu valor a produção artística local, embelezou suas ruas e organizou um moderno traçado urbano em formato de tabuleiro de xadrez.

Assim Pelotas cresceu, centralizando na cidade toda a produção agrícola das colônias, explorando o comércio e a cultura local, importando refinados comportamentos, ganhou expressão nacional na produção de doces. O passado em Pelotas é visitado através da memória que não se cansa de recordar. A memória faz questão de aparecer, de ser mostrada através das fachadas de seus casarões e prédios históricos, reproduzidos até mesmo dentro de sua principal feira, a Fenadoce.

Fatos simples como esse, demonstram o quanto a política de valorização do patrimônio artístico cultural local é importante para a própria manutenção da economia urbana. Ou seja, Pelotas se projeta e se vende muito bem como cidade histórica.

Lembrando que os pelotenses, atualmente, ocupam a 8° posição no ranking do PIB do estado do Rio Grande do Sul, enquanto Rio Grande está no 4º lugar. Basicamente, a economia da cidade vizinha está apoiada no forte comércio local e em algumas pequenas indústrias de beneficiamento de alimentos. Além disso, conta com o forte apelo de ser uma cidade universitária.

Cabe aqui lembrar que Pelotas conseguiu transformar um pedaço de lagoa em praia, com direito a orla, pista de caminhada, trapiche, centro comercial, quiosques e estacionamento a poucos metros da água. Com um pequeno porto fluvial, impôs-se geoeconomicamente e ergueu grandes indústrias alimentícias, importantes para o desenvolvimento da cidade e da região sul na primeira metade do no século passado.

Texto publicado no site tucotuco em: 19/01/2014

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